A Rocha da Paleta de Narmer (1ª Dinastia do Egito)
Reverso e obverso da Paleta de Narmer, artefato datado de 3150 a.C.
A Paleta de Narmer é considerada o primeiro documento histórico do
mundo. Consiste de um artefato esculpido de rocha na forma de uma grande paleta
para esmerilhar substâncias minerais que seriam usadas para confecção de
cosméticos. A paleta está decorada com figuras do primeiro faraó da 1ª Dinastia
cujo nome foi traduzido para Narmer. Como se sabe, a escrita hieroglífica
egípcia é logofonética, isto é, são figuras que representam sons e algumas
representam ideias e palavras inteiras, e o sistema de escrita egípcio não
inclui vogais apenas sons consonantais cujas vogais eram preenchidas na mente
do leitor egípcio. Esse tipo de sistema de escrita tornou-se comum nos
alfabetos semíticos (hebraico, fenício, aramaico, árabe e proto-sinaítico)
sendo chamado de Abjad (não possui vogais, apenas consoantes).
No topo da paleta estão identificados dois símbolos hieroglíficos: O
peixe-gato (nativo do rio Nilo) e o cinzel (ferramenta de entalhar rochas), o
hieróglifo do peixe-gato é transliterado para o som "nr" e o
hieróglifo do cinzel é transliterado para o som "mr". Assim, a
tradução dada pelos Egiptólogos para esses dois hieróglifos é feita preenchendo
as vogais faltantes (existe uma regra de como inserir as vogais, sendo um tanto
flexível e varia de autor para autor) o que se traduziu como Narmer. Esse é
considerado o faraó que unificou o Baixo e o Alto Egito em uma única nação.
Narmer é conhecido na história também como Meni (Menés) que é considerado a
mesma pessoa com diferentes nomes titulares. A paleta mostra Narmer com um
cetro ou clava em uma mão e segurando uma pessoa identificada como seu inimigo
pelo cabelo estando prestes à abate-lo.
Os Egiptólogos
acreditam que aquele inimigo derrotado por Narmer é provavelmente o rei do
Baixo Egito. Os pesquisadores mostram que a paleta está representando a
conquista de Narmer sobre as duas terras do Egito. Num lado da paleta ele está
representado usando a coroa branca, chamada de hedjet, do Alto Egito e no outro
lado da paleta ele aparece usando a coroa vermelha, chamada de deshret, do
Baixo Egito. Os faraós dali em diante usavam as duas coroas combinadas como
símbolo de rei do Alto e Baixo Egito. A coroa resultante era chamada de pshent.
Num lado da paleta ao lado da figura do faraó estão vários corpos decapitados
com as cabeças colocadas entre as pernas dos corpos. Os egípcios tinham esse
ritual em batalha de decapitar seus inimigos. Narmer conquistou o poder
absoluto sobre todo o Egito utilizando a força da violência e consequentemente
a máquina do medo e da dominação. No verso da paleta está representada a
procissão do faraó com a coroa do Baixo Egito e abaixo da cena duas criaturas
de pescoços longos entrelaçados que os pesquisadores interpretam como a
unificação das duas terras representada pelas duas bestas com os pescoços
entrelaçados. Mais abaixo está um touro golpeando uma figura de pessoa inimiga.
Os faraós também eram identificados com o touro como símbolo de força física e
robustez diante de ameaças.
Acima da cabeça
do faraó está o falcão segurando o inimigo por uma corda que está ligada a uma
argola amarrada nas narinas do inimigo prestes a ser morto. O falcão é o deus
egípcio Hórus, símbolo de governo e autoridade do Egito, filho de Osíris, o
senhor da colheita e dos mortos. Cada faraó representava em vida Hórus e quando
faleciam passavam por um complexo ritual funerário que os comparava ao deus
Osíris, que foi morto, mumificado e ressuscitou para se tornar o deus do duat,
o submundo. A paleta foi descoberta na antiga cidade egípcia de Nekhen que os
gregos chamaram pelo noem de Hierakonpolis (que significa a cidade do falcão).
Essa era a sede da adoração de Hórus e continha um templo grandioso onde o
faraó fazia oferendas e orações a Hórus. Um dos setores desse templo em
Hierakonpolis foi escavado no final do século XIX pelos pesquisadores europeus
Green e Quibell que chamaram a região escavada de "Depósito
Principal" que continha vários artefatos religiosos e ritualísticos
incluindo a famosa Paleta de Narmer. O artefato foi datado em 3150 a.C.
aproximadamente a data do começo da 1ª Dinastia.
Essa não era
uma paleta comum, mas parecia ter tido utilidade ritualística para se queimar
incensos e oferecer cosméticos diante do altar do deus Hórus. Alguns
pesquisadores não concordam muito sobre a interpretação histórica da paleta
porque o artefato não especifica através de escritos que aquele inimigo era
realmente o rei que governava o norte do Egito durante o Período Pré-Dinástico
e/ou também se aquele evento foi real ou apenas uma história contada como
lembrança ritualística da origem gloriosa do primeiro faraó. Seja como for, a
interpretação mais aceita na comunidade dos pesquisadores é esta aqui
apresentada de que a Paleta de Narmer é um documento histórico. O fato é que
Narmer foi uma pessoa real, sua tumba foi descoberta em Abydos, a necrópole dos
faraós do Período Arcaico, cabeças de clava feitas de marfim também foram
encontradas com seu nome gravado e até mesmo um pedaço de cabeça de estátua
dele também foi descoberto. A Lista dos Reis do Templo de Abydos construído
pelo faraó Seti I da 19ª Dinastia também mostra o primeiro cartucho com o
primeiro nome gravado, "Meni", ou Menés que é a mesma pessoa de
Narmer.
Cabeça de clava do faraó Narmer descoberta nas escavações em Hierakonpolis no "depósito principal" onde também foi encontrada a Paleta de Narmer.
Um fato
interessante sobre a Paleta de Narmer diz respeito ao material do qual ela foi
esculpida. Os pesquisadores classificaram o material como xisto. No entanto, o
xisto é uma rocha metamórfica de granulação grossa apresentando foliação
definida, chamada de xistosidade, contendo muitas vezes cristais visíveis e
grandes de granada, silimanita e/ou estaurolita chamados de porfiroblastos. A
rocha da paleta é cinza esverdeada, de granulação fina, sem cristais grandes
visíveis e apresentando uma clivagem ardosiana. De fato, a verdadeira
classificação do material geológico da paleta de Narmer é metasiltito. Esse
material era muito utilizado pelos egípcios e conhecido desde o Egito
Pré-Dinástico até o Período Romano. Os egípcios chamavam essa rocha de bekhen
que não possui uma tradução fidedigna. Essa palavra egípcia, bekhen, foi depois
transformada pelos gregos e depois transferida para o latim como basalto.
Embora o basalto seja uma rocha vulcânica máfica e não um metasiltito, a
palavra ficou porque os povos antigos confundiam o basalto com o metasiltito
daquela região.
Frente de antiga lavra da Pedreira de Wadi Hammamat no Alto Egito próximo da região de Tebas e el Qoseir onde se extraia as rochas metassedimentares, principalmente aqui o metasiltito do qual se encontra diferentes litotipos incluindo a metagrauvaca. O metasiltito de Wadi Hammamat foi a rocha utilizada para se esculpir a Paleta de Narmer. Os antigos egípcios chamavam essa rocha ornamental de pedra de bekhen.
A origem da
pedra de bekhen, classificada aqui como pedra de utensílio ou, se
preferir, rocha ornamental, é na famosa Pedreira de Wadi Hammamat localizada no
Deserto Oriental próxima da cidade de Tebas onde os egípcios construíram uma
estradinha pavimentada de pedras que liga a região próxima da cidade até a
pedreira que também continua até o Mar Vermelho. A geologia local onde a
Pedreira de Wadi Hammamat se encontra é extremamente rica e variada,
consistindo de embasamento Pré-Cambriano de sequências metamáfico-ultramáficas
caracterizado por serpentinitos e gnaissse gabroico que
estão cobertos por uma sequência metassedimentar composta por
metaconglomerados, metarenitos e metasiltitos. O pacote de rochas
metassedimentares está encaixado por um plúton de granito rosa com
mineralizações hidrotermais preenchendo fraturas nas rochas encaixantes na
forma de veios e filões de quartzo leitoso com ouro nativo, galena e
sulfossais. A pedreira foi utilizada para extração de rocha ornamental,
especialmente o metasiltito, chamado de pedra de bekhen, que é mais expressivo
em afloramentos e o granito rosa. Secundariamente, mas não menos importante, a
pedreira também foi fonte de uma boa fração do ouro egípcio. Grande parte do
ouro era trazido pelos egípcios da Núbia, uma cultura um pouco distinta da
egípcia que durante milênios foi subordinada aos faraós. Outro local de onde
provinha ouro, alguns tipos de rochas ornamentais e gemas era a terra de Punto
que não foi precisamente identificada até hoje.
Os metasiltitos
da Pedreira de Wadi Hammamat eram utilizados para fazer artefatos tais como a
Paleta de Narmer, como também estatuetas funerárias, de deuses e faraós
e estelas e tábuas com inscrições. A rocha relativamente mole e moldável e
de aspecto envernizado e homogêneo era atraente aos egípcios para a realização
de suas confecções. Por fim, os pesquisadores aceitaram que aquela rocha da
Paleta de Narmer não era um xisto, mas na verdade era um metasiltito, a famosa
pedra de bekhen dos egípcios.
Referências:
Alice
Stevenson. The Material
Significance of Predynastic and Early Dynastic Palettes. Current Research in
Egyptology 2005: Proceedings of the Sixth Annual Symposium, pp. 148 - 162
Dietrich D. Klemm; Rosemarie Klemm (2001)
The building stones of ancient Egypt – a gift of its geology. Journal of African Earth Sciences, Vol. 33, No.3 - 4, pp. 631 - 642
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