O Mapa Geológico Mais Antigo da História: O Papiro de Turin



Fragmentos do mapa geológico do Papiro de Turin (1150 a.C.)

O papiro de Turin é um documento egípcio que foi descoberto em 1820 pelos agentes do francês Consul Geral no Egito Bernardino Drovetti  e hoje encontra-se no Museu Egípcio em Turin, na Itália. O conceito de mapa geológico significa uma representação gráfica de uma localização real no planeta onde se mantém as proporções reais com uma devida escala e apresenta a distribuição espacial dos diferentes tipos de unidades geológicas e seus litotipos. Se você achava que o mapa geológico da Grã Bretanha feito pelo Geólogo britânico William Smith em 1815 foi o primeiro da História, se enganou. 

Os mapas elaborados no antigo Egito eram sempre míticos, isto é, retratavam locais mitológicos que não correspondiam à geografia ou geologia reais. Por exemplo, durante o Reino Médio, principalmente durante a 12ª Dinastia, os sarcófagos eram decorados com hieróglifos e vinhetas (ilustrações acompanhando os textos) de textos funerários cujo principal tema era ajudar o espírito do falecido a encontrar o Salão do Julgamento onde o deus Osíris acompanharia o julgamento da alma do morto para que ele fosse para o Aaru, o paraíso num plano superior de existência.
 
Esses textos funerários foram depois chamados de Textos dos Sarcófagos que junto com os Textos das Pirâmides, feitos nas pirâmides dos faraós e rainhas do Velho Reino (principalmente da 5ª até 7ª Dinastia), daria origem ao Livro dos Mortos, compilado em papiros durante o Novo Reino, especialmente na 19ª Dinastia. Esses Textos dos Sarcófagos também poderiam vir acompanhados de um mapa, colocado no interior do mesmo, representando o Submundo chamado em egípcio de Duat ou Amduat. Esse mapa era de uma região mítica, o além, e mostrava dois caminhos seguros para a alma do morto percorrer livre de ataques de demônios e criaturas estranhas que habitam o submundo. Esse mapa junto com os textos foi chamado de O Livro dos Dois Caminhos. Esses eram os mapas elaborados pelos antigos egípcios.


No entanto, o Papiro de Turin apresenta um mapa com um contexto e motivação totalmente diferentes dos mapas do submundo mitológico. Esse documento contém escritas hieráticas (hieróglifos cursivos) e apresenta um mapa de uma região real do Egito. Os pesquisadores analisaram o mapa e observaram que este estava representando uma pedreira no Deserto Oriental. As cores utilizadas mostravam as diferentes unidades litológicas reconhecidas pelo escriba que elaborou o mapa. O mapa representa a Pedreira de Wadi Hammamat, localizada no Deserto Oriental próxima da antiga cidade egípcia de Tebas (também chamada de Luxor). O papiro estava muito fragmentado e foi necessário recontruí-lo como num quebra-cabeça. O mapa foi feito durante o reinado do faraó Ramsés IV da 20ª Dinastia durante o Novo Reino e o autor foi o Escriba da Tumba, alto funcionário do rei cujo nome era Amennakhte, filho de Ipuy, que fez o mapa por volta do ano 1150 a.C. Amennakhte não assinou esse documento, no entanto, seu estilo de escrita é bem conhecida dos Egiptólogos que o identificam pelos seus projetos arquitetônicos como no papiro que representa a Tumba de Ramsés IV onde ele assina seu nome. Até sua casa foi identificada nas ruínas da cidade de Deir el Medineh em Tebas.

Mapa do Egito mostrando a localização da Pedreira de Wadi Hammamat próxima de Luxor (Tebas) - mapa do artigo de James Harrell.

O mapa contém estradas de acesso à pedreira, toponímias como o Templo de Amun feito durante o reinado do faraó Seti I da 19ª Dinastia como também a estela desse rei e estradinhas que levavam à região próxima do Mar Vermelho. Também existem algumas informações topográficas e a reprodutibilidade do mapa está razoavelmente dentro de uma escala coerente sugerindo noções bem avançadas de mapeamento geológico e georreferenciamento para a época. O objetivo das expedições faraônicas para a Pedreira de Wadi Hammamat era obter blocos de rocha ornamental de metasiltito que os egípcios chamavam de pedras de Bekhen. A escrita hierática dá informações de toponímia e diz os locais de extração da rocha bekhen, granito rosa e de ouro. Informações topográficas planimétricas são fornecidas nos escritos hieráticos onde se diz as distâncias entre os locais de extração da rocha de bekhen e os depósitos de ouro e os destinos das rotas no vale da pedreira.

Desenho do mapa do papiro de Turin mostrando as feições geográficas e as estradas de acesso da pedreira - artigo de James Harrell.

A geologia descrita no mapa está bem demonstrada em cores diferentes para cada litologia distinta reconhecido por Amennakhte. Ali está descrita as montanhas negras das rochas siliciclásticas de Hammamat, os morrotes cor de rosa das rochas vulcânicas de Dokhan, o serpentinito de Atalla e o granito de Fawakhir.  Coberturas quaternárias também estão descritas no mapa como pontos marrons, brancos e verdes representando os cascalhos do wadi da região. Detalhes sobre os veios de quartzo leitoso contendo ouro irradiando do corpo granítico e descrições breves dos modos de lavra também estão presentes. Este é um impressionante mapa geológico com pouco mais de 3100 anos de idade! Contendo toponímias, caminhos e vias de acesso, dados planimétricos e altimétricos, representação de diferentes litologias com cores para cada tipo (rosa, verde, branco e preto), descrição de lavra e detalhamento de corpos mineralizados, esse papiro é digno de ser considerado de fato o mapa geológico mais antigo da História!


 A Pedreira de Wadi Hammamat foi utilizada por milênios pelos egípcios. As primeiras expedições a esta pedreira se iniciaram ainda no Egito Protodinástico, dado o exemplo da Paleta de Narmer, feita da famosa rocha de bekhen. Sem dúvida, durante todos os milênios, muito conhecimento geológico e topográfico foi sendo acumulado pelos egípcios. Os escribas e arquitetos dos faraós devem ter armazenados as informações em papiros e repassado estas até chegar no nível de qualidade do mapa de Amennakhte, escriba e arquiteto do rei Ramsés IV. Evidências arqueológicas na própria pedreira das muitas visitas podem ser vistas pela presença de templos e estelas ali mesmo erigidos como também interessantes petroglifos representando deuses e faraós nas exposições de rocha nas frentes de lavra. Sem dúvida, essa foi uma das mais importantes pedreiras utilizadas pelos egípcios para fazer seus artefatos de rocha, afinal de contas, a civilização egípcia antiga ficou conhecida como a civilização das rochas.

Petroglifos em bloco de rocha na Pedreira de Wadi Hammamat, os Arqueólogos também chamam essa inscrição de grafite, de Ramsés IV onde estão representados dois cartuchos com seus dois epítetos principais. Aqui Ramsés IV (figura humana à direita) está representado fazendo oferendas ao deus da fertilidade Min (figura central com coroa alta).


Referências:

James A. Harrell; V. Max Brown (1992) The World's Oldest Surviving Geological Map: The 1150 B.C. Turin Papyrus from Egypt. The Journal of Geology, Vol. 100, No. 1, pp. 3 - 18

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